quinta-feira, 22 de abril de 2010

A Sombra do Vento





O CEMITÉRIO DOS LIVROS ESQUECIDOS


«Ainda me lembro daquele amanhecer em que o meu pai me levou pela primeira vez a visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Desfiavam-se os primeiros dias do Verão de 1945 e caminhávamos pelas ruas de uma Barcelona apanhada sob céus de cinza e um sol de vapor que se derramava sobre a Rambla de Santa Mónica numa grinalda de cobre líquido.
— Não podes contar a ninguém aquilo que vais ver hoje, Daniel — advertiu o meu pai. — Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.

— Nem sequer à mamã? — inquiri eu, a meia-voz.

O meu pai suspirou, amparado naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.

— Claro que sim — respondeu, cabisbaixo. — Para ela não temos segredos. A ela podes contar tudo.

Pouco depois da guerra civil, um surto de cólera tinha levado a minha mãe. Enterráramo-la em Montjuïc no dia do meu quarto aniversário. Só me lembro de que choveu todo o dia e toda a noite e que quando perguntei ao meu pai se o céu chorava lhe faltou a voz para me responder. Seis anos depois, a ausência da minha mãe era para mim ainda uma miragem, um silêncio gritante que até então não tinha aprendido a emudecer com palavras.

0 meu pai e eu vivíamos num pequeno andar da Rua Santa Ana, junto da praça da igreja. 0 andar ficava situado mesmo por cima da livraria especializada em edições de coleccionador e livros usados herdada do meu avô, um bazar encantado que o meu pai contava que um dia passasse para as minhas mãos. Criei-me entre livros, fazendo amigos invisíveis em páginas que se desfaziam em pó e cujo cheiro ainda conservo nas mãos. Em criança aprendi a conciliar o sono enquanto explicava à minha mãe na penumbra do meu quarto as incidências da jornada, as minhas andanças no colégio, o que tinha aprendido nesse dia... Não podia ouvir a sua voz ou sentir o seu contacto, mas a sua luz e o seu calor ardiam em cada recanto daquela casa e eu, com a fé dos que ainda podem contar os seus anos pelos dedos das mãos, acreditava que, se fechasse os olhos e falasse com ela, ela me poderia ouvir de onde estivesse. Às vezes, o meu pai ouvia-me da sala de jantar e chorava às escondidas.

Lembro-me de que naquele alvorecer de Junho acordei a gritar. 0 coração batia-me no peito como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr pelas escadas abaixo. 0 meu pai acorreu alvoroçado ao meu quarto e tomou-me nos braços, tentando acalmar-me.

— Não consigo lembrar-me da cara dela. Não consigo lembrar-me da cara da mamã — murmurei ofegante.

O meu pai abraçou-me com força.

— Não te preocupes, Daniel. Eu lembrar-me-ei pelos dois.

Olhámo-nos na penumbra, procurando palavras que não existiam. Foi a primeira vez que me apercebi de que o meu pai envelhecia e de que os seus olhos, olhos de névoa e de perda, olhavam sempre para trás. Pôs-se de pé e abriu as cortinas para deixar entrar a tíbia luz do alvorecer.

— Anda, Daniel, veste-te. Quero mostrar-te uma coisa — disse ele. — Agora? As cinco da manhã?

— Há coisas que só se podem ver no meio das trevas — insinuou o meu pai brandindo um sorriso enigmático que provavelmente tinha tomado de empréstimo de algum volume de Alexandre Dumas.

As ruas ainda languesciam entre neblinas e guardas-nocturnos quando chegámos à porta da rua. Os candeeiros das Ramblas desenhavam uma avenida de vapor, pestanejando ao mesmo tempo que a cidade se espreguiçava e se desfazia do seu disfarce de aguarela. Ao chegar à Rua Arco del Teatro aventurámo-nos rumo ao Raval sob a arcada que prometia uma abóbada de bruma azul. Segui o meu pai através daquele caminho estreito, mais cicatriz que rua, até que o relume das Ramblas se perdeu atrás de nós. A claridade do amanhecer filtrava-se das varandas e cornijas em sopros de luz enviesada que não chegavam a roçar o solo. Finalmente, o meu pai deteve-se defronte de um portão de madeira trabalhada enegrecido pelo tempo e pela humidade. Diante de nós erguia-se o que me pareceu o cadáver abandonado de um palácio, ou um museu de ecos e sombras.

— Daniel, não podes contar a ninguém o que vais ver hoje. Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.

Um homenzinho com traços de ave de rapina e cabeleira prateada abriu-nos a porta. 0 seu olhar aquilino poisou em mim, impenetrável.

— Bom dia, Isaac. Este é o meu filho Daniel — anunciou o meu pai.- Está quase a fazer onze anos, e um dia ficará ele a tomar conta da loja. Já tem idade para conhecer este lugar.

O tal Isaac convidou-nos a entrar com um leve gesto de assentimento. Uma penumbra azulada cobria tudo, insinuando apenas traços de uma escadaria de mármore e uma galeria de frescos povoados de figuras de anjos e criaturas fabulosas. Seguimos o guardião através daquele corredor palaciano e chegámos a uma grande sala circular onde uma autêntica basílica de trevas jazia sob uma cúpula retalhada por feixes de luz que pendiam lá do alto. Um labirinto de corredores e estantes repletas de livros subia da base até à cúspide, desenhando uma colmeia tecida de túneis, escadarias, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma gigantesca biblioteca de geometria impossível. Olhei para o meu pai, boquiaberto. Ele sorriu-me, piscando-me o olho.

— Bem-vindo ao Cemitério dos Livros Esquecidos, Daniel.

Salpicando os corredores e plataformas da biblioteca perfilava-se uma dúzia de figuras. Algumas delas voltaram-se para cumprimentar de longe, e reconheci os rostos de diversos colegas do meu pai do grémio de alfarrabistas. Aos meus olhos de dez anos, aqueles indivíduos afiguravam-se uma confraria secreta de alquimistas a conspirar nas costas do mundo. 0 meu pai ajoelhou-se ao pé de mim e, sustendo-me o olhar, falou-me com aquela voz leve das promessas e das confidências.

— Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte. Há já muitos anos, quando o meu pai me trouxe pela primeira vez aqui, este lugar já era velho. Talvez tão velho como a própria cidade. Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe, ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue aqui. Neste lugar, os livros de que já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo? O meu olhar perdeu-se na imensidade daquele lugar, na sua luz encantada. Fiz um sinal de assentimento e o meu pai sorriu.

— E sabes o melhor? — perguntou.

Abanei a cabeça em silêncio.

— O costume é que a primeira vez que alguém visita este lugar tem de escolher um livro, aquele que preferir, e adoptá-lo, assegurando-se de que ele nunca desapareça, de que permaneça sempre vivo. É uma promessa muito importante. Para toda a vida — explicou o meu pai. — Hoje é a tua vez.»

 - Texto lido na aula de Geografia, no âmbito da Semana da Leitura

Sem comentários:

Enviar um comentário